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Este início de inverno pude viver uma experiência singular que transformou conceitos já estruturados, em ampliações inomináveis que trouxeram no seu rastro uma nova noção da dimensão das possibilidades humanas.
Deixe-me ser clara quanto ao fato em si para depois ocupar-me das associações que jorraram como chuva fina - aquela que mais penetra.
Éramos algumas pessoas amigas reunidas numa informal passagem de tarde de inverno discutindo a arte como expressão dos sentimentos, como ato de coragem, de humildade, de compromisso com o mais puro prazer. No calor que tal conversa transmitia, uma das pessoas mostrou as telas que vinha pintando há, somente, dois meses.
Uma explosão de satisfação percorreu cada rosto pois o que víamos era a mais pura expressão da noção de segurança, de coragem, de despreocupação com o julgamento alheio. Uma das pessoas, que conhece tal pintora há algumas décadas, lembrou que ela sempre fora arrojada em tudo que fazia. Lembrava mesmo um personagem dos mais interessantes, dos adoráveis anos loucos do início de nosso século.
Enquanto todos mantinham-se perplexos com o fato de em tão pouco tempo suas telas terem tamanha força e expressão, movimento, equilíbrio de cores, enfim - uma verdadeira obra de arte, esta amiga antiga conseguiu sintetizar em uma frase a posição da artista: “Parece que para Maria nunca foi dito que pintar assim era impossível”.
O momento subseqüente a tal afirmação fez-me imóvel de gestos e farta em associações, ligadas à minha atividade clínica.
Enquanto psicanalista devo admitir que o que mais vejo nas relações entre pais e filhos é uma comunicação precária; a comunicação não verbal é pouco estabelecida, configurada de forma ineficiente e no que concerne a comunicação verbalizada é, via de regra pontilhada de frases (conscientes ou inconscientes) que desencorajam, criam medos, ampliam inseguranças e não promovem a auto-estima.
Percebemos a grande atenção que deve ser dada à produção da fala, que é o elemento formal para o estabelecimento das relações.
É através do que ouve de seus modelos que a criança configura não só sua fala como a imagem que tem de si.
Temos notícias de experiências e pesquisas que comprovam a existência de situações de tal nível de dor e sofrimento que fazem com que a informação processada (evento vivido ou visto) seja armazenada em lugar pouco acessível à consciência.
Em situações extremas, a reação subseqüente da criança pode ser confundida com amnésia, desinteresse, mentira ou mesmo falta de concentração. Exemplos destes experimentos podem ser confirmados no livro Base Segura de John Bowlby (ed. Artes Médicas)
Não ter jamais ouvido que determinada atividade é impossível de ser realizada pode permitir que uma pessoa vivencie sua mais genuína forma de expressão, seja ela em que área for, sem medo, constrangimento ou uma ameaça de por não ser o esperado, não ser o aceito.
Enquanto psicanalista que abraça uma teoria compatível com as necessidades afetivas deste final de século (Biological Attachment Theory) onde a solidão, o medo, o desamor e o sentimento de orfandade andam lado a lado com o stress e a cobrança da vida cotidiana, percebi que , mais uma vez, o “colo incondicional” é o ato mais fundamental e pilar para suportar o medo de viver.
Estava certo Guimarães Rosa quando disse que viver é muito perigoso. Claro que torna-se muito mais perigoso caso o indivíduo não consiga o estabelecimento de uma relação confiável, segura e atenta que possa introduzi-lo ao sentimento de amor incondicional.
Aí sim, este indivíduo poderá ampliar seus limites e se dar conta disso.
Para tanto, é necessário que saibamos - nós, os analistas - como foram as primeiras e mais importantes relações estabelecidas por este indivíduo, o que foi vivido, o que deixou de ser. Isto implica o que é chamado de mundo real, assim como o mundo intrapsíquico, das fantasias, das projeções.
Devemos saber da importância da figura materna e paterna enquanto modelos e referenciais que tal indivíduo tenderá a repetir caso não vivencie outra qualidade de relação, mudando e corrigindo com isso, suas metas.
Temos discutido incessantemente as diferentes linhas de desenvolvimento da psicanálise, enquanto ciência e enquanto prática clínica. Vemos que não é difícil encontrar quem queira discutir teorias já configuradas, algumas já com um certo ranço.
Vemos que existem os que aplaudem os devaneios e as elocubrações teóricas como se, no caso da psicanálise, pudesse não estar a teoria emparelhada com a prática.
Parece que a psicanálise que vemos por aí sendo discutida e esgarçada é distante daquela relação tão peculiar e única que só se vive a dois, no interior de um espaço preservado para tal. O fato é que existe uma nítida confusão entre a vida acadêmica e a vida clínica.
Se de uma partem as idéias, de outra partem as ações. Para que as duas não se distanciem parece ser necessário uma real visão do social, do papel do ser no contexto real do lugar em que vive, de sua cultura e tradições. Não me parece que seja o homem que sofre que deve saber qual é a melhor linha teórica para a qual deve dirigir seu pedido de ajuda.
Manteremos uma postura científica e pesquisadora quando, verdadeiramente pudermos adeqüar as facetas teóricas baseadas em dados, com a real história de cada um; quando pudermos perceber que, evidentemente, abraçar uma teoria e suas expansões plausíveis só nos torna mais fartos de conhecimento científico, não nos fazendo necessariamente melhores clínicos.
Certamente é necessário e fundamental o respaldo teórico, a erudição, a leitura constante de novas pesquisas, tendências e observações. Para um bom teórico o espaço de sua sala será ocupado pelos dados, pelas hipóteses, pelas tabelas e estatísticas. Para um clínico, todos esses itens já deverão estar presentes quando ele abre a porta de sua sala.
Daí para a frente ele deverá deixar que sua intuição, seu bom senso, seu colo, sua compreensão acerca do desenvolvimento dos fatos, sua noção clara de realmente estar com o outro e partilhar com ele seus sentimentos, tomem conta de sua parte nesta relação tão especial. A postura deverá então ser heurística e profundamente afetiva para que se tenha, na realidade uma relação compartilhada, uma ação partilhada - uma interação.
E é a partir da vivência genuína desta qualidade de relação tão reconstrutiva, que a noção de impossível se afasta. Tudo pode ser vivido. Tólstoi acertou ao dizer: quem é feliz está certo. Sobra-nos perseguir tal felicidade, única para cada um.